quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Formas do Nu - João Cabral de Melo Neto

1.
A aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
de seu cuspe privado.

Jamais para velar-se:
e por isso não são ralos.
Para enredar os outros
é que usa os enredados.

Ela sabe evitar
que a enrede seu trabalho,
mesmo se, dela mesma,
o trama, autobiográfico.

E em muito menos tempo
que tomou em tramá-lo,
o véu que não a velou
aí deixa, abandonado.

2.
Somente na metade
é o arauá couraçado.
Na metade cimento,
na laje do telhado.

Porque apenas do teto
que o veste pelo alto,
o arauá existe nu,
nu de pele, esfolado.

Sua casa tem teto
mas não tem assoalho:
cai descalça no mangue,
chão também escoriado.

E o morador da casa
se mistura por baixo
com a lama já mucosa:
bixo e chão penetrados.

3.
Que animais prezam o nu
quanto o burro e o cavalo(que aliás em Pernambuco
jamais andam calçados).

A sela e a cangalha
deixam-nos sufocados
como se respirassem
também pelos costados.

É vê-los se espojar
na escova má do pasto
quando lhes tiram o arreio
e os soltam no cercado:

se espojando, têm todos
os gestos de asfixiado:
espasmos, estertores
de asmático e afogado.

4.
O homem é o animal
mais vestido e calçado.
Primeiro, a pano e feltro
se isola do ar do abraço.

Depois, a pedra e cal,
de paredes trajado,
se defende do abismo
horizontal do espaço.

Para evitar terra,
calça nos pés sapatos,
nos sapatos, tapetes,
e nos tapetes, soalhos.

Calça as ruas: e como
não pode todo o mato
para andar nele estende
passadeiras de asfalto.

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